Limites da fé

Qual o limite de uma pessoa, na defesa de sua crença, para “salvar a vida” de um feto?

O caso a seguir é impressionante e parece enredo de novela. E daquelas difíceis de acreditar.

Durante o exame de uma gestante, foi descoberto que o feto possuía uma deformação, denominada síndrome de Body Stalk. Segundos estudos, é o mais raro dentre todos os defeitos da parede abdominal com ocorrência média de 1 caso para cada 14.273 nascimentos, e não há chances do bebê sobreviver.

Diante disso, a mãe conseguiu autorização judicial para interromper a gestação e foi internada, passando a receber medicamentos para induzir o parto.

Dias depois, para sua surpresa, um padre conseguiu, na justiça, uma liminar para cancelar o aborto, sob a alegação de “que as autorizações para abortamento ferem o direito básico à vida do pobre bebê, que estava em vias de ser assassinado (…) seu objetivo era dar à indefesa criança o direito de viver pelo tempo que lhe era destinado”*.

Com isso, os medicamentos foram suspensos e a mãe ficou mais dois dias em observação no hospital até receber alta.

Oito dias depois voltou ao hospital, agora em trabalho de parto, dando à luz à criança que faleceu em seguida, devido a referida doença.

Diante de todos os abalos sofridos, os pais pleitearam danos morais contra o padre.

Em primeira e segunda instância, nos Tribunais de Goiás, os julgadores negaram o dano moral, até que o processo chegou ao último recurso no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

De tão inusitada a causa, deixamos a conclusão da história nas brilhantes palavras da julgadora Ministra Nancy Andrighi, do STJ:

 

A ida para o hospital e a antecipação de um trabalho de parto que naturalmente ocorreria alguns meses depois, já eram, por si sós, elementos de intensa angústia para aquele casal, mas em meio a todos os sentimentos contraditórios que envolviam a decisão que tomaram, ao menos tinham a certeza de que estavam acolhidos em um ambiente em ambiente hospitalar, seguro, asséptico, controlado por equipe médica e com prazo razoavelmente delimitado para o término da interrupção da gestação.

 

No entanto, esse lastro de conforto psicológico lhes foi abruptamente retirado, no quarto dia de tratamento de indução ao parto, por força da liminar conseguida pelo padre.

 

O sofrimento do casal – principalmente o da gestante – ganhou contornos trágicos com a liminar conseguida, que obrigou a equipe médica a interromper o uso da medicação, quando já havia início de dilatação.

 

E como se não bastasse essa cadeia de eventos, por si aterrorizante, no dia seguinte a gestante foi mandada para casa, perdendo o apoio técnico da equipe médica e o evidente conforto psicológico que estar em um ambiente hospitalar lhe proporcionava, isso tudo sem citar o risco físico para a parturiente, porquanto o procedimento, em tudo, fugia à normalidade.

 

Mais 8 (oito) dias se passaram para que a medicação interrompida fosse eficaz a ponto de induzir o organismo da mãe a expulsar o feto, momento em que voltou ao hospital – mas nessa semana, completamente desassistida, sentiu, desnecessariamente, as dores do longo processo de adaptação do seu organismo para que levasse a cabo o processo iniciado no hospital, período em que foi amparada, exclusivamente pelo seu esposo.

 

O pai, que a tudo acompanhou, inerme, e ao final, ainda teve que providenciar o registro de nascimento/óbito e o enterro da criança, que como previsto, veio a óbito logo após o nascimento.

 

Um Estado de Direito laico, como é o brasileiro, tem a obrigação de garantir não só apenas a liberdade de crença, mas que qualquer um possa propagar o que entende por correto, inclusive, tentando em linha de convencimento, demover aqueles que não pactuam de seus ideais.

 

Ocorre que essa liberdade é restrita ao campo das ideias, podendo nele defender todo e qualquer conceito que reproduza seus postulados de fé. Caracteriza-se abuso de direito a imposição de seus conceitos e valores a terceiros, mesmo com autorização judicial, retirando do outro, a mesma liberdade de ação que deseja para si.

 

Assim, impõe-se o reconhecimento de que o padre tocou, com dano, espaço reservado à liberdade do casal e, ainda, por incúria ou perfídia, utilizou-se de um direito próprio – direito de ação – para impor, aos pais, estigma emocional que os acompanhará perenemente.

 

Sob essa ótica, fixo, a título de danos morais, o valor de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), corrigidos monetariamente e com a incidência de juros de mora a partir do dia que a mãe deixou o hospital*. (Recurso Especial nº 1.467.888/GO)

*o texto não está na íntegra, fizemos resumos e adaptações para facilitar o entendimento.