Um proprietário pode vender todo seu patrimônio sem qualquer restrição, contudo, quando a mesma operação é feita para uma filha ou seu pai, por exemplo, a legislação considera anulável, salvo se tiver o consentimento dos outros descendentes (art. 496 CC).
Essa regra objetiva proteger os demais descendentes de uma antecipação de herança indevida, onde o proprietário poderia destinar maior parte (ou a totalidade) do patrimônio para um herdeiro, em detrimento de outro.
Infelizmente é muito comum os desentendimentos familiares que acabam causando rachas nos relacionamentos parentais, resultando, por exemplo, em predileção de um filho em relação aos demais no planejamento familiar.
Essa lógica pode ser inversa e o filho privilegiar um ascendente em desvantagem do outro, sempre lembrando que os ascendentes (pai, mãe, avós) também são herdeiros (art. 1.829, II, CC).
Na compra e venda, apesar da lei referir-se apenas a transferência de ascendente para descendente (art. 496 CC), o parágrafo único menciona em “ambos os casos”, dando a entender que teria mais um caso de anulabilidade. O Conselho da Justiça Federal editou enunciado com interpretação extensiva, abarcando a anulabilidade também na hipótese de venda de descendente para ascendente; é o Enunciado 177, CJF: Por erro de tramitação, que retirou a segunda hipótese de anulação de venda entre parentes (venda de descendente para ascendente), deve ser desconsiderada a expressão “em ambos os casos”, no parágrafo único do art. 496.
Mas, e se os demais filhos se recusarem ou não puderem consentir com a venda, o que fazer? Os interessados podem ir em juízo pedir o suprimento judicial, quando o juiz supre a assinatura da parte, como no precedente abaixo:
ALVARÁ JUDICIAL. VENDA ASCENDENTES. DESCENDENTES. OUTORGA UXÓRIA. INTERDITADA. SUPRIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. 1. Admissível o suprimento judicial da outorga da mulher, incapaz para anuir, quando ausente prejuízo patrimonial para a mesma. (TJES, processo 57040002362, Rel. Des. Samuel Meira Brasil Junior, publ.: 12/09/2007)
O mestre Marco Aurélio Bezerra de Mello traz um exemplo didático:
É possível imaginar situação na qual a venda ao descendente permitirá angariar recursos para o tratamento médico custoso de outro descendente de um segundo casamento e um dos irmãos unilaterais se coloque desfavorável à venda a outro irmão sem que se apresente motivo justificador. Parece-nos que nesse caso hipotético a autorização judicial para a venda deve ser outorgada em favor dos interessados[1].
Como dito o objetivo é resguardar os herdeiros, evitando burla com a parte disponível do patrimônio com um eventual transpasse para um herdeiro em prejuízo de outro. Ocorre que essa trampa pode se dar por intermédio de outra pessoa, por exemplo, o namorado de um filho, uma nora, etc. Nesses casos aplicar-se-á a nulidade por simulação, uma vez que o contrato foi utilizado para aparentar a transferência do imóvel para uma pessoa diversa da que realmente se transfere (art. 167, §1º, I, CC).
[1] Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência, Ed. Forense, livro digital, p. 297.
Escrito por Luis Arechavala
Advogado do Escritório Arechavala Advogados