A cultura do consumo é fruto da sociedade pós-moderna[1], nela estão inseridas um conjunto de questões que incluem a íntima relação entre consumo, estilo de vida, reprodução social, identidade, autonomia da esfera cultural, “estetização” e “comoditização” da realidade[2]. Também estão inseridos atributos negativos em sua essência, como a perda de autenticidade das relações sociais, o materialismo, a superficialidade e o imediatismo. A mistura desses fatores marca a sociedade atual.
O combustível do consumo é o crédito, peça de dinamização da produção capitalista, que pressupõe movimento contínuo, lançando para o futuro perspectivas incessantes de crescimento e desenvolvimento.
Em contrapartida, a banalização do consumo, transforma-se em um fator de endividamento, visto que a obtenção de crédito, muitas vezes, é desmedida e sem a devida análise da capacidade dos contratantes.
Neste aspecto, o fenômeno tratado é uma das faces da democratização do crédito[3], por estar diretamente ligado à história do crédito ao consumidor.
Precursor nos estudos comparados sobre superendividamento, Geraldo de Faria Martins da Costa expõe que:
Na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como meio de financiar a atividade econômica. Segundo a cultura do endividamento, viver de crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direito fácil, mas perigoso. O consumidor endividado é uma engrenagem essencial, mas frágil da economia fundada sobre o crédito[4].
Até há pouco tempo no Brasil as pessoas (físicas) não tinham grande acesso ao mercado formal de crédito, em que empréstimos voltados ao consumo eram vistos com desconfiança, e as taxas de juros em nada favoreciam estas ‘tomadas’, de modo que as pessoas pegavam dinheiro emprestado de instituições financeiras mais para a aquisição de moradia ou como maneira extrema para conseguir quitar as despesas médicas ou educacionais não subsidiadas pelo ente público.
Portanto, o superendividamento é relativamente recente no país. Fato oposto se mostra nos países com economias mais aprimoradas, onde já existem meios legais, em especial na Europa, que buscam reequilibrar o setor produtivo mediante a reinserção no mercado de um consumidor recuperado financeiramente, com a utilização de diversas medidas para prevenir e/ou tratar da situação, a citar: a imposição do dever de informação preventiva, verificação da capacidade de reembolso pelo consumidor, criação de programas de educação para o crédito, viabilização de seguros, limitação da taxa de juros, dentre outras.
DEFINIÇÃO
De uma maneira geral, pode-se constatar o superendividamento pela impossibilidade do devedor, pessoa física de boa-fé, quitar todas as suas dívidas[5], atuais e futuras, com o seu patrimônio e rendimento, sem que para isto não prejudique a sua subsistência e de sua família.
A jurisprudência nacional utiliza-se, principalmente, de princípios (positivados) para articular o superendividamente à proteção do consumidor endividado, em especial, o princípio da dignidade humana:
APELAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO. CONTRATO BANCÁRIO. DÍVIDA DE EMPRESTIMOS SUCESSIVOS. RETENÇÃO DO SALÁRIO EM PERCENTUAL SUPERIOR A 30%. SUPERENDIVIDAMENTO. OFENSA À DIGNIDADE HUMANA. 1- O débito não foi negado ao longo do processo pela parte Autora da ação, apenas se insurgindo quanto ao modo pela qual está sendo feita à cobrança. 2- Apesar de existir débito, não pode a instituição financeira, se valer do salário do devedor, que lhe é confiado, para além do limite de 30%. 3- Ninguém pode ser privado da integralidade do seu salário, pois isto inviabiliza a aquisição do mínimo necessário para a subsistência do ser humano, considerando ser esta a sua única fonte de renda. 4- Percebe-se o incentivo ao superendividamento, ao fracasso financeiro dos clientes menos esclarecidos, visando o aumento do lucro. Dignidade da pessoa humana que deve ser respeitada. 5- Possibilidade de retenção de parte do valor em conta-corrente, desde que limitada a 30% do salário recebido pelo devedor. Limite que se aplica mesmo quando há diversas instituições mutuantes. Incidência da súmula nº 200 e 295 do TJERJ. 6- DESPROVIMENTO DOS RECURSOS, NOS TERMOS DO ART. 932, IV, A, DO NCPC/2015. 0057083-15.2013.8.19.0001 – APELACAO 1ª Ementa DES. TERESA ANDRADE – Julgamento: 11/07/2016 – SEXTA CAMARA CIVEL[6].
Outro ponto que pode ser observado é que não há uma quantia certa que defina o débito a partir do qual se pode considerar o devedor como superendividado. A maneira mais fiel seria a partir da análise entre o ativo e passivo do indivíduo e sua família, atendendo as particularidades de caso a caso. Entretanto, devido a inviabilidade de tal medida, para a fundamentação das decisões, utiliza-se como parâmetro a retenção/desconto de, no máximo, 30% (trinta por cento) dos rendimentos do indivíduo, salvo exceções[7], cujo embasamento legal encontra-se no art. 2º, §2º, I da Lei 10.820/2003, que prevê:
No momento da contratação da operação, a autorização para a efetivação dos descontos permitidos nesta Lei observará, para cada mutuário, os seguintes limites:
I – a soma dos descontos referidos no art. 1o desta Lei não poderá exceder a trinta por cento da remuneração disponível, conforme definida em regulamento.
Por fim, vale destacar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283/2012, que visa alterar o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor, definir conceitos e dispor sobre a prevenção do superendividamento. Para maiores informações, pode-se acompanhar o projeto através do sítio eletrônico: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106773.
[1] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 23-24.
[2] BARBOSA, Lívia. Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Ed Zahar. 2014, p. 10.
[3] SCHMIDT NETO, André Perin. Revisão dos Contratos com base no Superendividamento: do Código de Defesa do Consumido ao Código Civil. São Paulo: Juruá, 2009, p. 256.
[4] COSTA, 2006, p. 231.
[5] Excluídas certas dívidas, por exemplo, a do fisco, oriundas de delitos e de alimentos. (MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 260).
[6] http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/31308/superendividamento-3.pdf?=10
[7] Lei nº 279, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1979, do Estado do Rio de Janeiro, que permite desconto de até 70% (setenta por cento) para aluguel ou aquisição de residência para policiais e bombeiros militares.