Author: Felipe Navarro

Bem de família

A família é a base da sociedade. Por tal motivo, nossa Constituição Federal atribui a ela especial proteção. Do mesmo modo, a residência familiar também foi dotada de atenção especial por parte do legislador.

O bem de família é conceituado pelo Código Civil, em seu art. 1.712, como sendo o “prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar”. Conceituando-se de forma mais simples, é o imóvel utilizado como residência por um núcleo familiar.

O objetivo desse instituto é proteger não só a entidade familiar, mas também tutelar o direito à moradia (Art. 6º, C.F.). Logo, são muito restritas as hipóteses em que um bem de família possa ser levado à penhora para pagamento de dívida.

Atualmente, as hipóteses em que o imóvel familiar pode ser penhorado estão previstas no art. 3º da lei 8.009, de 29 de março de 1990. De forma resumida, o bem de família pode ser penhorado somente para o pagamento: (i) do financiamento destinado à aquisição do imóvel; (ii) da dívida de pensão alimentícia; (iii) dívidas advindas do próprio imóvel (IPTU, condomínio, etc); (iv) de hipoteca que recaia sobre o imóvel; (v) de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Assim como ocorre nos demais casos de restrição de direitos, tais hipóteses em que o bem de família pode ser penhorado nunca devem ser interpretados de forma extensiva. Nesse sentido, veja-se o enunciado de nº 364 da súmula do Superior Tribunal de Justiça:

O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Ou seja, por família não se entende necessariamente uma coletividade de pessoas, de modo que tal direito persiste mesmo após o divórcio, morte do cônjuge, separação, etc:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL NO QUAL RESIDEM FILHAS DO EXECUTADO. BEM DE FAMÍLIA. CONCEITO AMPLO DE ENTIDADE FAMILIAR. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA.

1. “A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia” (EREsp 182.223/SP, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6/2/2002).

2. A impenhorabilidade do bem de família visa resguardar não somente o casal, mas o sentido amplo de entidade familiar. Assim, no caso de separação dos membros da família, como na hipótese em comento, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge em duplicidade: uma composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um dos cônjuges. Precedentes.

3. A finalidade da Lei nº 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas, sim, reitera-se, a proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo.

4. Recurso especial provido para restabelecer a sentença.

(REsp 1126173/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/04/2013, DJe 12/04/2013)

 

Importante notar, ainda, que as decisões do STJ sobre o tema ressaltam o caráter cogente/obrigatório da proteção do bem de família, de modo que ao titular deste benefício não é sequer permitida a renúncia:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUE PRESCRITO. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA.

1. A proteção conferida ao instituto de bem de família é princípio concernente às questões de ordem pública, não se admitindo nem mesmo a renúncia por seu titular do benefício conferido pela lei, sendo possível, inclusive, a desconstituição de penhora anteriormente feita.

2. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que o benefício conferido pela Lei 8.009/90 trata-se de norma cogente, que contém princípio de ordem pública, e sua incidência somente é afastada se caracterizada alguma hipótese descrita no art. 3º da Lei 8.009/90, o que não é o caso dos autos.

3. A finalidade da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva.

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 537.034/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 01/10/2014)

Diante desses contornos, torna-se fácil notar a importância que a moradia familiar ganhou ao longo dos últimos anos. Até mesmo o requisito de que a família more no imóvel tido como bem de família já foi mitigado pelo STJ, conforme o enunciado nº 486 de sua súmula:

É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.

Tamanha proteção advém da intenção do legislador de que nenhuma família seja alijada de um mínimo existencial, de modo que a dignidade da pessoa humana integrante de um núcleo familiar seja minimamente protegida.

 

Portanto, podemos concluir que o bem de família é verdadeira questão de ordem pública, de modo que sua proteção é imposição do Estado, como reflexo de uma garantia constitucionalmente estabelecida, e não uma opção do beneficiário ou proteção ao devedor.