Author: Luis Felipe de Oliveira

Superendividamento

A cultura do consumo é fruto da sociedade pós-moderna[1], nela estão inseridas um conjunto de questões que incluem a íntima relação entre consumo, estilo de vida, reprodução social, identidade, autonomia da esfera cultural, “estetização” e “comoditização” da realidade[2]. Também estão inseridos atributos negativos em sua essência, como a perda de autenticidade das relações sociais, o materialismo, a superficialidade e o imediatismo. A mistura desses fatores marca a sociedade atual.

O combustível do consumo é o crédito, peça de dinamização da produção capitalista, que pressupõe movimento contínuo, lançando para o futuro perspectivas incessantes de crescimento e desenvolvimento.

Em contrapartida, a banalização do consumo, transforma-se em um fator de endividamento, visto que a obtenção de crédito, muitas vezes, é desmedida e sem a devida análise da capacidade dos contratantes.

Neste aspecto, o fenômeno tratado é uma das faces da democratização do crédito[3], por estar diretamente ligado à história do crédito ao consumidor.

Precursor nos estudos comparados sobre superendividamento, Geraldo de Faria Martins da Costa expõe que:

 

Na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como meio de financiar a atividade econômica. Segundo a cultura do endividamento, viver de crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direito fácil, mas perigoso. O consumidor endividado é uma engrenagem essencial, mas frágil da economia fundada sobre o crédito[4].

 

Até há pouco tempo no Brasil as pessoas (físicas) não tinham grande acesso ao mercado formal de crédito, em que empréstimos voltados ao consumo eram vistos com desconfiança, e as taxas de juros em nada favoreciam estas ‘tomadas’, de modo que as pessoas pegavam dinheiro emprestado de instituições financeiras mais para a aquisição de moradia ou como maneira extrema para conseguir quitar as despesas médicas ou educacionais não subsidiadas pelo ente público.

Portanto, o superendividamento é relativamente recente no país. Fato oposto se mostra nos países com economias mais aprimoradas, onde já existem meios legais, em especial na Europa, que buscam reequilibrar o setor produtivo mediante a reinserção no mercado de um consumidor recuperado financeiramente, com a utilização de diversas medidas para prevenir e/ou tratar da situação, a citar: a imposição do dever de informação preventiva, verificação da capacidade de reembolso pelo consumidor, criação de programas de educação para o crédito, viabilização de seguros, limitação da taxa de juros, dentre outras.

 

DEFINIÇÃO

 

De uma maneira geral, pode-se constatar o superendividamento pela impossibilidade do devedor, pessoa física de boa-fé, quitar todas as suas dívidas[5], atuais e futuras, com o seu patrimônio e rendimento, sem que para isto não prejudique a sua subsistência e de sua família.

A jurisprudência nacional utiliza-se, principalmente, de princípios (positivados) para articular o superendividamente à proteção do consumidor endividado, em especial, o princípio da dignidade humana:

 

APELAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO. CONTRATO BANCÁRIO. DÍVIDA DE EMPRESTIMOS SUCESSIVOS. RETENÇÃO DO SALÁRIO EM PERCENTUAL SUPERIOR A 30%. SUPERENDIVIDAMENTO. OFENSA À DIGNIDADE HUMANA. 1- O débito não foi negado ao longo do processo pela parte Autora da ação, apenas se insurgindo quanto ao modo pela qual está sendo feita à cobrança. 2- Apesar de existir débito, não pode a instituição financeira, se valer do salário do devedor, que lhe é confiado, para além do limite de 30%. 3- Ninguém pode ser privado da integralidade do seu salário, pois isto inviabiliza a aquisição do mínimo necessário para a subsistência do ser humano, considerando ser esta a sua única fonte de renda. 4- Percebe-se o incentivo ao superendividamento, ao fracasso financeiro dos clientes menos esclarecidos, visando o aumento do lucro. Dignidade da pessoa humana que deve ser respeitada. 5- Possibilidade de retenção de parte do valor em conta-corrente, desde que limitada a 30% do salário recebido pelo devedor. Limite que se aplica mesmo quando há diversas instituições mutuantes. Incidência da súmula nº 200 e 295 do TJERJ. 6- DESPROVIMENTO DOS RECURSOS, NOS TERMOS DO ART. 932, IV, A, DO NCPC/2015. 0057083-15.2013.8.19.0001 – APELACAO 1ª Ementa DES. TERESA ANDRADE – Julgamento: 11/07/2016 – SEXTA CAMARA CIVEL[6].

 

Outro ponto que pode ser observado é que não há uma quantia certa que defina o débito a partir do qual se pode considerar o devedor como superendividado. A maneira mais fiel seria a partir da análise entre o ativo e passivo do indivíduo e sua família, atendendo as particularidades de caso a caso. Entretanto, devido a inviabilidade de tal medida, para a fundamentação das decisões, utiliza-se como parâmetro a retenção/desconto de, no máximo, 30% (trinta por cento) dos rendimentos do indivíduo, salvo exceções[7], cujo embasamento legal encontra-se no art. 2º, §2º, I da Lei 10.820/2003, que prevê:

 

No momento da contratação da operação, a autorização para a efetivação dos descontos permitidos nesta Lei observará, para cada mutuário, os seguintes limites:

I – a soma dos descontos referidos no art. 1o desta Lei não poderá exceder a trinta por cento da remuneração disponível, conforme definida em regulamento.

 

 

Por fim, vale destacar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283/2012, que visa alterar o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor, definir conceitos e dispor sobre a prevenção do superendividamento. Para maiores informações, pode-se acompanhar o projeto através do sítio eletrônico: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106773.

 

[1] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o Consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 23-24.

[2] BARBOSA, Lívia. Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Ed Zahar. 2014, p. 10.

[3] SCHMIDT NETO, André Perin. Revisão dos Contratos com base no Superendividamento: do Código de Defesa do Consumido ao Código Civil. São Paulo: Juruá, 2009, p. 256.

[4] COSTA, 2006, p. 231.

[5] Excluídas certas dívidas, por exemplo, a do fisco, oriundas de delitos e de alimentos. (MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coord.). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006, p. 260).

[6] http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/31308/superendividamento-3.pdf?=10

[7] Lei nº 279, DE 26 DE NOVEMBRO DE 1979, do Estado do Rio de Janeiro, que permite desconto de até 70% (setenta por cento) para aluguel ou aquisição de residência para policiais e bombeiros militares.

Condomínio pago pelo inquilino sem passar pelo proprietário

Os condomínios que sofrem com inadimplementos recorrentes das taxas condominiais têm uma nova perspectiva.

A partir de decisão recente em sede de Recurso Especial, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade dos inquilinos pagarem as cotas condominiais diretamente às administradoras de condomínio, sem que isso configure ilegalidade ou inadimplemento em relação aos proprietários do imóvel.

O caso que deu origem a decisão foi oriundo de ação de cobrança contra construtora proprietária de expressiva quantidade de unidades de um mesmo condomínio que chegou a acumular débito de quase R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) em cotas vencidas. A proprietária recebia os valores de seus inquilinos, contudo, não efetuava o devido repasse à administradora, que argumentou diante da situação não ter condições de cumprir as obrigações básicas do condomínio.

O pedido da administradora foi acolhido liminarmente sob o fundamento utilizado na garantia de que os valores pagos fossem efetivamente utilizados para o pagamento das contas do condomínio, assim o pagamento direto afastaria a obrigação do proprietário do imóvel.

O STJ, por sua vez, utilizou-se de regra prevista no Código de Processo Civil (art. 671 do CPC de1973, correspondente ao art. 855 do Novo CPC de 2015), que permite ser penhorado crédito do devedor com terceiros. Com isso, entendeu no sentido de que os inquilinos, devedores da Construtora-proprietária, que é devedora do Condomínio, poderão pagar diretamente a ele.

Vale frisar que a decisão abre precedente interessante contra proprietário desidioso, permitindo o pagamento direto pelos inquilinos.