Categoria: Direito de Família

Bem de família

A família é a base da sociedade. Por tal motivo, nossa Constituição Federal atribui a ela especial proteção. Do mesmo modo, a residência familiar também foi dotada de atenção especial por parte do legislador.

O bem de família é conceituado pelo Código Civil, em seu art. 1.712, como sendo o “prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar”. Conceituando-se de forma mais simples, é o imóvel utilizado como residência por um núcleo familiar.

O objetivo desse instituto é proteger não só a entidade familiar, mas também tutelar o direito à moradia (Art. 6º, C.F.). Logo, são muito restritas as hipóteses em que um bem de família possa ser levado à penhora para pagamento de dívida.

Atualmente, as hipóteses em que o imóvel familiar pode ser penhorado estão previstas no art. 3º da lei 8.009, de 29 de março de 1990. De forma resumida, o bem de família pode ser penhorado somente para o pagamento: (i) do financiamento destinado à aquisição do imóvel; (ii) da dívida de pensão alimentícia; (iii) dívidas advindas do próprio imóvel (IPTU, condomínio, etc); (iv) de hipoteca que recaia sobre o imóvel; (v) de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Assim como ocorre nos demais casos de restrição de direitos, tais hipóteses em que o bem de família pode ser penhorado nunca devem ser interpretados de forma extensiva. Nesse sentido, veja-se o enunciado de nº 364 da súmula do Superior Tribunal de Justiça:

O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Ou seja, por família não se entende necessariamente uma coletividade de pessoas, de modo que tal direito persiste mesmo após o divórcio, morte do cônjuge, separação, etc:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL NO QUAL RESIDEM FILHAS DO EXECUTADO. BEM DE FAMÍLIA. CONCEITO AMPLO DE ENTIDADE FAMILIAR. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA.

1. “A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito à moradia” (EREsp 182.223/SP, Corte Especial, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 6/2/2002).

2. A impenhorabilidade do bem de família visa resguardar não somente o casal, mas o sentido amplo de entidade familiar. Assim, no caso de separação dos membros da família, como na hipótese em comento, a entidade familiar, para efeitos de impenhorabilidade de bem, não se extingue, ao revés, surge em duplicidade: uma composta pelos cônjuges e outra composta pelas filhas de um dos cônjuges. Precedentes.

3. A finalidade da Lei nº 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, tornando seus bens impenhoráveis, mas, sim, reitera-se, a proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo.

4. Recurso especial provido para restabelecer a sentença.

(REsp 1126173/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/04/2013, DJe 12/04/2013)

 

Importante notar, ainda, que as decisões do STJ sobre o tema ressaltam o caráter cogente/obrigatório da proteção do bem de família, de modo que ao titular deste benefício não é sequer permitida a renúncia:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. CHEQUE PRESCRITO. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA.

1. A proteção conferida ao instituto de bem de família é princípio concernente às questões de ordem pública, não se admitindo nem mesmo a renúncia por seu titular do benefício conferido pela lei, sendo possível, inclusive, a desconstituição de penhora anteriormente feita.

2. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que o benefício conferido pela Lei 8.009/90 trata-se de norma cogente, que contém princípio de ordem pública, e sua incidência somente é afastada se caracterizada alguma hipótese descrita no art. 3º da Lei 8.009/90, o que não é o caso dos autos.

3. A finalidade da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva.

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no AREsp 537.034/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 01/10/2014)

Diante desses contornos, torna-se fácil notar a importância que a moradia familiar ganhou ao longo dos últimos anos. Até mesmo o requisito de que a família more no imóvel tido como bem de família já foi mitigado pelo STJ, conforme o enunciado nº 486 de sua súmula:

É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.

Tamanha proteção advém da intenção do legislador de que nenhuma família seja alijada de um mínimo existencial, de modo que a dignidade da pessoa humana integrante de um núcleo familiar seja minimamente protegida.

 

Portanto, podemos concluir que o bem de família é verdadeira questão de ordem pública, de modo que sua proteção é imposição do Estado, como reflexo de uma garantia constitucionalmente estabelecida, e não uma opção do beneficiário ou proteção ao devedor.

Novas famílias – Multiparentalidade

O núcleo familiar passou por modificações ao longo das últimas décadas. Se há 50 anos compreendia-se como família apenas a tríade pai, mãe e filho(s), atualmente este conceito é elástico, comportando diversas possibilidades. Coube ao Direito se modernizar, a fim de acompanhar as mudanças sociais e culturais.

Atualmente, está em voga a discussão acerca da multiparentalidade, ou seja, o reconhecimento de vínculo familiar mantido entre várias pessoas. Quem almeja oficializar relacionamento do tipo encontra óbices impostos pela desatualizada legislação registral.

Contudo, quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com os costumes, a analogia e os princípios gerais de direito, conforme determina o artigo 4° da Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

A legislação registral deve ser relativizada naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais em vigor. Especialmente, aqueles direcionados à promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da Constituição).

Foi nesta direção o julgado que reconheceu a existência de multiparentalidade determinando o registro de nascimento da criança com duas mães e um pai; vale ressaltar as peculiaridades do caso, detalhadas na decisão:

“(…) temos que ELENA é filha biológica de ROBERTO e MARIANA, que é casada com LUCIANA, oficialmente no registro público. A peculiaridade do caso está em que há comprovação de que o projeto familiar, tocante ao nascimento de Elena, foi compartilhado por MARIANA, LUCIANA e ROBERTO, tanto que se prepararam – em conjunto com os respectivos familiares – para terem a filha nesse molde familiar, com duas mãe e um pai. Para tanto, buscaram auxílio psiquiátrico, desde 02 anos antes do nascimento de Elena, junto à médica psiquiatra Olga Garcia Falceto, professora da Faculdade de Medicina da UFRGS e Coordenadora do Ensino do Instituto de Família, que declarou (fl. 27): “ELENA é filha de Mariana R., Luciana P. e Roberto C. Seus pais me procuraram como psiquiatra terapeuta familiar em Agosto de 2012 com a finalidade expressa de preparar-se para terem um filho em conjunto. Assim trabalhamos ao longo de 2012, 2013 e 2014 nessa direção. Mariana e Luciana vivem juntas desde 2006 e casaram-se oficialmente em agosto de 2014. Roberto conhece Luciana desde 1990 e Mariana desde 2006. Programaram ter um filho depois de conviverem muito em busca de criar uma cultura familiar comum. Seus pais, familiares e amigos participaram desse processo.” O projeto familiar comum é corroborado pela declaração da médica, especialista em fertilização humana, Dra. Isabela Piva Fuhrmeister, que orientou os requerentes acerca da inseminação intra-uterina, solicitando exames pré-conceptivos a Mariana, bem como esclarecendo sobre os impedimentos legais para inseminação artificial no caso (fl. 28). Também a declaração da médica, Dra. Alice, esclarece que MARIANA, LUCIANA e ROBERTO tiveram sempre todos presentes por ocasião das ecografias realizadas (fl. 34), sendo abundante as provas no sentido de que toda a gestação foi vivenciada pelos três, vide as fotos de fls. 36/60; as declarações de amigos e parentes diversos de fls. 62/69 e, especialmente, o “pacto de filiação” de fl. 70/75, no qual os requerentes dispuseram – e comprometeram-se reciprocamente – em relação ao exercício do poder familiar, direito sucessório, guarda, visitação e alimentos em favor da filha Elena.

“(…) há que se julgar a pretensão da parte, a partir (…) do princípio do melhor interesse do menor, informador do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. (…) é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da “multiparentalidade”, com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. DERAM PROVIMENTO.

(TJRS, AC Nº 70062692876, Relator: José Pedro de Oliveira Eckert, Oitava Câmara Cível, J. 12/02/2015).

Casamentos no exterior

No imaginário popular, casamentos realizados no exterior, por exemplo na cidade americana de Las Vegas (EUA), são desprovidos de validade jurídica, sendo apenas uma “brincadeira” realizada pelo casal. No entanto, tal afirmação não é verdadeira.

Em regra, todo ato jurídico ou decisão proferida em País estrangeiro, para ter validade no Brasil, necessita passar por um processo de homologação, junto ao Superior Tribunal de Justiça.

Casamento e o divórcio são exceções a regra, pois são válidos e produzem efeitos, desde que sigam a legislação do local onde o matrimônio foi celebrado.

Confirmando essa excepcionalidade, o Novo Código de Processo Civil (art. 916, §5º), que passa a vigorar a partir de 17/03/2016, diz: “A sentença estrangeira de divórcio consensual produz efeitos no Brasil, independentemente de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça”.

Inclusive, aquele que casa-se em solo estrangeiro e posteriormente no Brasil, sem proceder ao necessário divórcio do primeiro matrimônio, incorre no crime de bigamia, presente no artigo 235 do Código Penal, cuja pena varia de 2 a 6 anos de reclusão.

Este é o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça:

“O casamento realizado no estrangeiro é válido no país, tenha ou não sido aqui registrado, e por isso impede novo matrimônio, salvo de desfeito o anterior. Recurso especial não conhecido.” (STJ, Resp 280.197, 3ª T, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 05.08.02)

Assim, o registro da certidão consular de casamento perante o Cartório do 1º Ofício do Registro Civil do domicílio do interessado, no Brasil, ou do Distrito Federal, serve apenas para conferir publicidade do ato perante terceiros, tendo natureza meramente declaratória.

(…) A tese da ineficácia do casamento deve ser rejeitada. O matrimônio realizado no exterior, desde que tenha seguido todo o rito necessário previsto na legislação do país em que foi realizado, constitui ato jurídico perfeito com validade e eficácia no Brasil. O registro no cartório de registro civil é apenas um meio de dar publicidade ao ato a fim de gerar efeitos perante terceiros, possuindo, portanto, natureza meramente declaratória.” (Des. Lindolpho Morais Marinho – Julgamento: 03/02/2015 – Décima Sexta Câmara Cível)

Aqueles que se casaram em outro País podem providenciar o divórcio no Brasil, desde que tenham domicílio em solo brasileiro, na forma do artigo 7° da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42):

“Casamento celebrado no exterior. Domiciliados no brasil. Partilha. Compete á autoridade judiciária brasileira para apreciar ação de divórcio, quando os cônjuges são domiciliados no brasil, mesmo que o matrimônio tenha sido realizado no exterior. Recurso provido.” (Pr. Nº 70055647879, 7ª C. Cível, TJRS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, J. em 06/08/2013)

Lei Maria da Penha – Transexuais

A Lei n° 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, cria mecanismos que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, com base no § 8°, Art. 226, C. F.

Há quem defenda que as medidas protetivas constantes da legislação em comento são aplicáveis apenas às pessoas que tenham nascido com o sexo feminino, numa interpretação literal da lei.

Porém, o juiz Alberto Fraga, do I Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Nilópolis/RJ, concedeu a uma transexual o direito de ter as medidas protetivas garantidas pela Lei Maria da Penha.

Para decidir, o juiz compreendeu que a identidade de gênero deve ser definida como experiência pessoal, fazendo prevalecer o princípio da dignidade humana.

Em sua decisão, destacou que a ausência de cirurgia de adequação de gênero, ou a falta de alterações registrais em documentos de identificação, não são fatores determinantes para a desqualificação de um transexual como mulher.

O magistrado explicou, por fim, que entendimento diverso a esse configuraria verdadeira discriminação, deixando em desamparo a vítima, o que não é tolerado pelo ordenamento jurídico pátrio.